Era uma vez um garotinho chamado Vincent Malloy, que, com apenas 7 anos de idade, sonha crescer para se tornar igual ao seu ídolo, o famoso astro de filmes de horror Vincent Price. Enquanto as outras crianças estão brincando na rua ou no quintal, o pequeno Vincent passa os dias trancado em casa, vivendo num mundo de fantasia construído a partir de cenários, situações e personagens dos filmes estrelados pelo seu ídolo.
A insólita infância de Vincent
Malloy foi narrada numa bizarra animação em preto-e-branco, realizada em stop-motion
e produzida pelos Estúdios Disney em 1982. E nem é necessário ler os nomes nos
créditos para imaginar quem está por trás desse conto-de-fadas às avessas:
basta ver as imagens e ler o argumento para perceber que o curta foi escrito e
dirigido por Tim Burton.
(Sim, aquele mesmo Tim Burton
que, a partir do final da década de oitenta, se transformaria num especialista
em filmes de fantasia, aliando um visual único a personagens e situações
esquisitas em filmes.)
Em 1982, Tim Burton escreveu,
desenhou e dirigiu o curta Vincent, na época em que ainda trabalhava com
animação no Walt Disney Studios. Gravado em stop-motion, Vincent conta a
história de um garoto que gostaria de ser como seu ídolo, o ator americano de
filmes de terror Vincent Price (1911-1993). Quase que auto-biográfico (na
verdade, ele também é um fã incondicional de Price), essa animação de terror
feito para crianças foi a primeira pincelada de toda uma carreira e linha de
filmagem sombria e fantasmagórica que o acompanha até hoje. O roteiro da
animação foi baseado num poema rimado escrito pelo próprio Burton, e a
história, sem diálogos, é narrada pelo próprio homenageado Vincent Price – que,
numa entrevista da época, declarou que este curta era como “a imortalidade”, e
melhor que qualquer estrela na Calçada da Fama na Hollywood Boulevard.
VINCENT
começa com um esquelético gato preto caminhando sobre um muro (onde lê-se o
nome do filme), ao lado de uma sinistra árvore, elementos que lembram o cenário
típico de filmes de horror. É o gato que leva a “câmera” até o personagem
principal da história, o garoto Vincent Malloy, representado como um menino
comum e bonitinho.
O narrador então anuncia: “Para
um rapaz da sua idade, é atencioso e agradável, mas o sonho dele é ser como
Vincent Price” (na tradução, obviamente, perde-se a rima do original, que
é: “For a boy his age he’s considerate and nice / But he wants to be just
like Vincent Price”). É então que o rosto “comum” do garoto se transforma,
ganhando o formato de um crânio, com os cabelos negros desgrenhados e olhos
grandes arregalados, a exemplo de muitos personagens posteriores de Burton.
Aliás, a fisionomia de Vincent lembra a do próprio Burton, que até hoje mantém
visual semelhante!
Ao longo do curta, o rosto de
Vincent muda para a forma “cadavérica” sempre que a narrativa entra no mundo
imaginário do menino. Durante os seis minutos de duração, o curta alterna
momentos do mundo real com momentos que se passam no mundo imaginário do garoto
– quando ele aparece perambulando por ambientes escuros, imitando calabouços e
laboratórios de filmes de horror.
Nestas cenas do mundo
imaginário, a cenografia tem detalhes que remetem não só aos cenários típicos
do cinema de horror, mas também aos filmes do Expressionismo Alemão, cultuados
pelo diretor e citados abertamente em toda a sua obra. Por exemplo, o cenário
irregular das ruas de Londres em um dos delírios do menino, com prédios tortos
e sombras, lembra muito “O Gabinete do Dr. Caligari”
(1920), de Robert Wiene.
Assim, VINCENT
se desenvolve amontoando homenagens e referências, principalmente aos trabalhos
de Vincent Price, o ídolo do pequeno personagem principal. Em uma cena, quando
o narrador fala sobre a tia do protagonista, em sua mente mórbida Vincent se
imagina mergulhando-a em uma tina de cera quente, numa referência ao filme “Museu
de Cera” (1953), de André De Toth, em que Vincent Price interpretava o
proprietário de um sinistro museu de cera cujas estátuas eram feitas com
pessoas mortas mergulhadas na substância.
Mais adiante, quando o
narrador revela que o autor preferido do menino é Edgar Allan Poe, a animação
recria várias situações e imagens de contos do escritor, que coincidentemente
foram estrelados por Vincent Price numa série de adaptações para o cinema
dirigidas pelo norte-americano Roger Corman nos anos 60.
Quando o menino Vincent, no
seu mundo de fantasia, imagina a esposa enterrada viva (e cava seu “túmulo” no
que, na vida real, é apenas o canteiro de flores da sua mãe), a referência é
não apenas ao conto “A Queda da Casa de Usher”, de Poe, mas também à
sua adaptação cinematográfica “O Solar Maldito” (1960), em que
Price encarnou Roderick Usher; quando aparece uma armadilha mortal em forma de
pêndulo, a referência é ao conto de Poe “O Poço e o Pêndulo”, que
Roger Corman transformou no filme “A Mansão do Terror” (1961),
também estrelado pelo mesmo ator; por fim, a animação termina com o menino
recitando um trecho de “O Corvo”, outra obra de Poe, novamente
transformada em filme homônimo por Corman em 1963, e mais uma vez com Vincent
Price no papel principal.
Hoje, VINCENT
também pode ser visto principalmente como um catálogo de referências ao próprio
cinema de Tim Burton: o visual do menino lembra a caracterização de Johnny Depp
em “Edward Mãos de Tesoura” (1990); no seu mundo
imaginário, Vincent tem a companhia de um gigantesco verme com muitos olhos,
idêntico aquele que apareceria depois em “Os Fantasmas Se
Divertem” (1988) e em “O Estranho Mundo de Jack”
(1993, escrito por Burton e dirigido por Henry Selick); e o cachorro do menino,
chamado Abercrombie, é muito parecido com os cães que aparecem em “A
Noiva Cadáver” (2005, co-dirigido por Mike Johnson) e “Frankenweenie”
(1984), duas outras animações dirigidas por Burton – nessa última,
inclusive, o diretor resgata uma idéia de VINCENT sobre o
cachorro morto ressuscitado em laboratório, à la Frankenstein. Até aparece um
monstrinho bem parecido com o Jack Skellington de “O Estranho Mundo de
Jack” durante um dos delírios de Vincent.
No geral, VINCENT
surpreende principalmente por não ser exatamente o tipo de animação que se
espera dos Estúdios Walt Disney (à época, e ainda hoje, um sinônimo de
inofensivas produções para crianças). Porém, com seu visual bizarro, seu
protagonista complicado e suas referências a filmes de horror e obras de Poe e
Mary Shelley, o curta é exatamente o que se espera de Tim Burton, ainda mais
para quem conhece um mínimo da sua filmografia.
Fica bastante evidente,
também, que a animação tem um tanto de auto-biografia, já que Burton confessou
ter sido uma criança “esquisita”, que cresceu cultuando os filmes de Vincent
Price.
Mais interessante para
adultos, e principalmente para os fãs do diretor ou cinéfilos que conheçam as
muitas referências que desfilam pelos seis minutos da animação, VINCENT
é narrado com um senso de humor bastante macabro, típico de Tim Burton, e
termina bem distante de um final feliz, com o personagem preso em sua própria
“insanidade”.
É uma visão bastante pessoal e
diferente (para não dizer excêntrica) das fantasias da infância, que remete
diretamente à frase do autor Henry James no seu clássico livro “A Volta do
Parafuso”: “Ninguém nunca vai saber se as crianças são monstros ou se
os monstros é que são crianças”.
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