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quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Vincent: O lado terrível da infância




Era uma vez um garotinho chamado Vincent Malloy, que, com apenas 7 anos de idade, sonha crescer para se tornar igual ao seu ídolo, o famoso astro de filmes de horror Vincent Price. Enquanto as outras crianças estão brincando na rua ou no quintal, o pequeno Vincent passa os dias trancado em casa, vivendo num mundo de fantasia construído a partir de cenários, situações e personagens dos filmes estrelados pelo seu ídolo.
A insólita infância de Vincent Malloy foi narrada numa bizarra animação em preto-e-branco, realizada em stop-motion e produzida pelos Estúdios Disney em 1982. E nem é necessário ler os nomes nos créditos para imaginar quem está por trás desse conto-de-fadas às avessas: basta ver as imagens e ler o argumento para perceber que o curta foi escrito e dirigido por Tim Burton.
(Sim, aquele mesmo Tim Burton que, a partir do final da década de oitenta, se transformaria num especialista em filmes de fantasia, aliando um visual único a personagens e situações esquisitas em filmes.)
Em 1982, Tim Burton escreveu, desenhou e dirigiu o curta Vincent, na época em que ainda trabalhava com animação no Walt Disney Studios. Gravado em stop-motion, Vincent conta a história de um garoto que gostaria de ser como seu ídolo, o ator americano de filmes de terror Vincent Price (1911-1993). Quase que auto-biográfico (na verdade, ele também é um fã incondicional de Price), essa animação de terror feito para crianças foi a primeira pincelada de toda uma carreira e linha de filmagem sombria e fantasmagórica que o acompanha até hoje. O roteiro da animação foi baseado num poema rimado escrito pelo próprio Burton, e a história, sem diálogos, é narrada pelo próprio homenageado Vincent Price – que, numa entrevista da época, declarou que este curta era como “a imortalidade”, e melhor que qualquer estrela na Calçada da Fama na Hollywood Boulevard.
VINCENT começa com um esquelético gato preto caminhando sobre um muro (onde lê-se o nome do filme), ao lado de uma sinistra árvore, elementos que lembram o cenário típico de filmes de horror. É o gato que leva a “câmera” até o personagem principal da história, o garoto Vincent Malloy, representado como um menino comum e bonitinho.
O narrador então anuncia: “Para um rapaz da sua idade, é atencioso e agradável, mas o sonho dele é ser como Vincent Price” (na tradução, obviamente, perde-se a rima do original, que é: “For a boy his age he’s considerate and nice / But he wants to be just like Vincent Price”). É então que o rosto “comum” do garoto se transforma, ganhando o formato de um crânio, com os cabelos negros desgrenhados e olhos grandes arregalados, a exemplo de muitos personagens posteriores de Burton. Aliás, a fisionomia de Vincent lembra a do próprio Burton, que até hoje mantém visual semelhante!
Ao longo do curta, o rosto de Vincent muda para a forma “cadavérica” sempre que a narrativa entra no mundo imaginário do menino. Durante os seis minutos de duração, o curta alterna momentos do mundo real com momentos que se passam no mundo imaginário do garoto – quando ele aparece perambulando por ambientes escuros, imitando calabouços e laboratórios de filmes de horror.
Nestas cenas do mundo imaginário, a cenografia tem detalhes que remetem não só aos cenários típicos do cinema de horror, mas também aos filmes do Expressionismo Alemão, cultuados pelo diretor e citados abertamente em toda a sua obra. Por exemplo, o cenário irregular das ruas de Londres em um dos delírios do menino, com prédios tortos e sombras, lembra muito “O Gabinete do Dr. Caligari” (1920), de Robert Wiene.
Assim, VINCENT se desenvolve amontoando homenagens e referências, principalmente aos trabalhos de Vincent Price, o ídolo do pequeno personagem principal. Em uma cena, quando o narrador fala sobre a tia do protagonista, em sua mente mórbida Vincent se imagina mergulhando-a em uma tina de cera quente, numa referência ao filme “Museu de Cera” (1953), de André De Toth, em que Vincent Price interpretava o proprietário de um sinistro museu de cera cujas estátuas eram feitas com pessoas mortas mergulhadas na substância.
Mais adiante, quando o narrador revela que o autor preferido do menino é Edgar Allan Poe, a animação recria várias situações e imagens de contos do escritor, que coincidentemente foram estrelados por Vincent Price numa série de adaptações para o cinema dirigidas pelo norte-americano Roger Corman nos anos 60.
Quando o menino Vincent, no seu mundo de fantasia, imagina a esposa enterrada viva (e cava seu “túmulo” no que, na vida real, é apenas o canteiro de flores da sua mãe), a referência é não apenas ao conto “A Queda da Casa de Usher”, de Poe, mas também à sua adaptação cinematográfica “O Solar Maldito” (1960), em que Price encarnou Roderick Usher; quando aparece uma armadilha mortal em forma de pêndulo, a referência é ao conto de Poe “O Poço e o Pêndulo”, que Roger Corman transformou no filme “A Mansão do Terror” (1961), também estrelado pelo mesmo ator; por fim, a animação termina com o menino recitando um trecho de “O Corvo”, outra obra de Poe, novamente transformada em filme homônimo por Corman em 1963, e mais uma vez com Vincent Price no papel principal.
Hoje, VINCENT também pode ser visto principalmente como um catálogo de referências ao próprio cinema de Tim Burton: o visual do menino lembra a caracterização de Johnny Depp em “Edward Mãos de Tesoura” (1990); no seu mundo imaginário, Vincent tem a companhia de um gigantesco verme com muitos olhos, idêntico aquele que apareceria depois em “Os Fantasmas Se Divertem” (1988) e em “O Estranho Mundo de Jack” (1993, escrito por Burton e dirigido por Henry Selick); e o cachorro do menino, chamado Abercrombie, é muito parecido com os cães que aparecem em “A Noiva Cadáver” (2005, co-dirigido por Mike Johnson) e “Frankenweenie” (1984), duas outras animações dirigidas por Burton – nessa última, inclusive, o diretor resgata uma idéia de VINCENT sobre o cachorro morto ressuscitado em laboratório, à la Frankenstein. Até aparece um monstrinho bem parecido com o Jack Skellington de “O Estranho Mundo de Jack” durante um dos delírios de Vincent.
No geral, VINCENT surpreende principalmente por não ser exatamente o tipo de animação que se espera dos Estúdios Walt Disney (à época, e ainda hoje, um sinônimo de inofensivas produções para crianças). Porém, com seu visual bizarro, seu protagonista complicado e suas referências a filmes de horror e obras de Poe e Mary Shelley, o curta é exatamente o que se espera de Tim Burton, ainda mais para quem conhece um mínimo da sua filmografia.
Fica bastante evidente, também, que a animação tem um tanto de auto-biografia, já que Burton confessou ter sido uma criança “esquisita”, que cresceu cultuando os filmes de Vincent Price.
Mais interessante para adultos, e principalmente para os fãs do diretor ou cinéfilos que conheçam as muitas referências que desfilam pelos seis minutos da animação, VINCENT é narrado com um senso de humor bastante macabro, típico de Tim Burton, e termina bem distante de um final feliz, com o personagem preso em sua própria “insanidade”.
É uma visão bastante pessoal e diferente (para não dizer excêntrica) das fantasias da infância, que remete diretamente à frase do autor Henry James no seu clássico livro “A Volta do Parafuso”: “Ninguém nunca vai saber se as crianças são monstros ou se os monstros é que são crianças”.


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